Gnósticos Sonham Com Robôs Gigantes? O crescimento do gnosticismo nos animes japoneses. Parte 1.



Hoje vou tentar algo novo no blog, estou trazendo um artigo na qual eu achei interessante e o traduzi do inglês, pois gostaria de compartilhá-lo com leitores do blog. Talvez essa iniciativa se repita, caso eu ache outros textos, artigos ou matérias que julgue interessantes.


O presente artigo aborda a influência do gnosticismo na indústria dos animes (e mangás naturalmente). Acho que muita gente sabe, por exemplo, que obras como Neon Genesis Evangelion e Full Metal Alchemist estão impregnadas de temas esotéricos, cabalísticos, alquímicos e consequentemente, gnósticos. Assim, o presente artigo buscou traçar um panorama destas influências dentro do mundo dos animes e mangás.


Não sou um expert em inglês, mas acho que a tradução ficou minimamente razoável. Traduzir textos longos se mostra bem complexo, pois é necessário ter o cuidado de modificar as partes que traduzidas literalmente ficam sem sentido ou estranhas em português sem modificar o que a essência do que o autor quis passar com sua ideia.


O Gnosticismo em si, na forma mais resumida possível, pode ser descrito como um conjunto de correntes religiosas e filosóficas muito antigas sendo que algumas correntes inclusive se mesclaram com o cristianismo nos primeiros séculos da era cristã.


Já adianto que não busco com essa postagem discutir religião ou algo do gênero, longe disso. O meu interesse por disponibilizar este artigo se dá do meu gosto por assuntos esotéricos e também pela história em geral. Então, acho que agradará quem gosta destes temas mais “ocultos” por assim dizer, ou apenas possui interesse na história mundial, já que o gnosticismo possui sua influência histórica, sobretudo na ficção.


Meu interesse nestes temas foi intensificado pela leitura de autores, geralmente de ficção científica, como Philip K. Dick, mais famoso pela obra Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas? Que foi adaptado como o sucesso dos cinemas Blade Runner. Nestes autores é possível verificar a presença de certa influência de diversas correntes filosóficas e religiosas. Tanto é que o título do artigo faz referência ao clássico de Philip K. Dick, “Gnósticos Sonham Com Robôs Gigantes? O crescimento do gnosticismo nos animes japoneses”.

Filme Blade Runner baseado na obre de Philip K. Dick.

Dentro do cristianismo institucionalizado desde sempre foi taxado como pensamento herético, tirando uma pequena época que gozou de prestígio dentre muitos intelectuais cristãos, aparecendo de vez em quando em correntes mais significativas ao longo dos séculos, como o catarismo, que floresceu aproximadamente a partir do Século XII, sendo que motivou a Primeira Cruzada. O gnosticismo não se resumiu ao mundo cristão, por sua natureza sincrética, já existia anteriormente, entre os persas e outros povos do oriente por exemplo.


Mas ainda não expliquei exatamente o que é o gnosticismo. No gnosticismo nosso mundo é considerado uma prisão, criada por uma divindade inferior, no caso do gnosticismo cristão, o Deus da Bíblia, também chamado de Demiurgo. Ele criou o mundo material e nos aprisionou nestas moradas de carne que chamamos corpo, deixando adormecida a centelha divina que habita em cada um de nós. Em suma, a matéria é má e o espírito bom e a salvação é alcançada através do conhecimento esotérico, ou gnose.


Com a leitura do artigo ficará claro que a ficção ao longo do tempo utilizou muitos símbolos e motivos de origem gnóstica, e na indústria dos mangás e animes não foi diferente. Obras que envolvam alquimia, cabala e outras correntes filosóficas religiosas bebem das fontes de conhecimento gnósticas.


O autor do artigo primeiramente tece alguns comentários sobre o gnosticismo na ficção e traça suas características mais marcantes. Em um segundo momento passa a analisar algumas obras específicas que possuam inspirações gnósticas.


Representação do mundo segundo o gnosticismo

Ressalto que não concordo com a totalidade do que o autor do artigo expôs, visto às vezes ter apresentado certos equívocos ou simplificações desnecessárias, apresentando muitos estereótipos como a definição do que seja um anime.


Além disso, vejo que o artigo seja um tanto limitado, visto abordar somente os animes, esquecendo completamente os mangás, os quais possuem um grau de independência maior em relação às animações, sendo que devido a isto possuem uma variedade de temas mais abrangente, podendo abordar certos assuntos que dificilmente seriam animados. Mas isto não retira o mérito do autor. Destaco também que por vezes o artigo possa parecer um pouco confuso, mas creio que com a minha breve introdução este aspecto possa ser amenizado.


A estrutura da postagem seguirá o seguinte esquema: Na verdade serão duas postagens, visto que quando terminei de traduzir o texto consegui encontrar em outro site o restante do artigo que não havia achado anteriormente. Desta forma, falta traduzir essa segunda parte.


Bem como, a divisão do artigo em duas postagens será vantajosa, visto diminuir a extensão da postagem, a qual ficaria muito longa. Assim sendo, nesta primeira postagem serão apresentadas estas considerações iniciais e a primeira parte do artigo, com a apresentação de alguns exemplos de animes apresentados pelo autor.


Na segunda parte será apresentado o restante das obras citadas pelo autor, bem como, acrescentarei algo pessoal, também citarei e tecerei breves comentários de alguns animes ou mangás que apresentem temáticas gnósticas.


Por último, desde já venho pedir aos leitores desta postagem que se quiserem citar outros exemplos de obras com temática gnóstica, fiquem livres para contribuir! Então, vamos ao artigo. Só para acrescentar, o que estiver dentro de colchetes [ ] foi acrescido por mim para facilitar o entendimento, bem como as imagens.

E mais um aviso importante! No artigo há a presença de spoilers pesados das obras abordadas, então leiam por sua conta e risco.
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Temas gnósticos nos animes japoneses.


(Excerto do artigo originalmente intitulado “Gnósticos Sonham Com Robôs Gigantes? O crescimento do gnosticismo nos animes japoneses”, de autoria de Miguel Conner e co-escrito com Elan Gonzales e publicado no “The Gnostic: A Journal of Gnosticism, Westerm Esotericism and Spirituality”, Terceira Edição.

Miguel Conner é escritor de ficção científica e apresentador do programa "Aeon Byte Gnostic Radio" com entrevistas e debates semanais sobre temas do gnosticismo, literatura e cultura pop.

Diferentemente da maioria das religiões, o Gnosticismo não tem condição de ser confinado à bidimensionalidade do papel. Além da ausência de qualquer cânone real, sua natureza sincrética e parasitária permitiu que o Espírito Gnóstico se manifestasse por si mesmo ao longo da história por diversas mídias. Além disso, a Gnose – aquele despertar do conhecimento do divino –, as vezes serviu-se melhor através das expressões artísticas do momento. Simon Magus, Valentinus, Mani, William Blake e WB Yeat [estudiosos do gnosticismo] eram tão sofisticados poetas quanto eram sábios na blasfêmia.


Nos tempos contemporâneos, o interesse pelo gnosticismo tem sido retomado tanto pela ficção especulativa, como pelas descobertas dos manuscritos de Nag Hammadi e o Evangelho de Judas. A ficção especulativa é talvez o veículo ideal para a teologia gnóstica, uma vez ambos extraem suas influências da mitologia, psicologia e dos estados alterados da consciência.


Mais que um veículo, o gnosticismo e a ficção especulativa são mais que uma união matrimonial Valentiniana, um casamento feito nos infernos criativos de artistas audaciosos, os quais as vezes não estão sequer conscientes que mergulharam nas cabeceiras do sethianismo ou valentinianismo [duas diferentes correntes do gnosticismo]. Isso é aparente nas frenéticas tempestades digitais de Matrix, dos irmãos Wachowski; nas explorações visionárias da ficção de Philip K. Dick; ou no delírio alquímico encontrado nas graphic novels de Alan Moore. Muito tem sido escrito sobre estas e outras expressões gnósticas contemporâneas.

Filme Matrix, dos irmãos Wachowski

Mas tem sido dada pouca atenção ao já desenvolvido gnosticismo numa forma de ficção especulativa não vinda do ocidente, uma aparente masturbação mental juvenil por símbolos fálicos na forma de robôs gigantes, Afrodites pré-adolescentes, mundos distópicos alternativos e cyberpunk catártico ultraviolento.


E isto é o anime (definido por Merriam-Webster como ‘um estilo de animação originário no Japão que é caracterizado por gráficos fortemente coloridos retratando personagens vibrantes em enredos cheios de ação, muitas vezes com temas fantásticos ou futurísticos’). [Cabe aqui uma breve nota deste tradutor, visto que eu particularmente penso que este conceito de “anime” é muito simplista estereotipado, ignorando sua vasta diversidade].


Há pouca evidência que este seja um fenômeno proposital. Há provavelmente duas principais razões pelas quais o gnosticismo realizou um hiero gamos [união entre uma divindade e um ser humano] com a animação japonesa (além do fato de que o anime é flagrantemente sincrético e parasitário em sua produção desenfreada para uma audiência mundial).


A primeira razão é que sem o marketing comercial de Hollywood, a imaginação já carregada dos escritores e animadores japoneses é ainda mais independente para chegar mais fundo nas cavidades da mitologia, psicologia e estados alterados da consciência.

A segunda razão tem a ver com o romance. Assim como os ocidentais gostam de absorver os elementos mais místicos das religiões orientais por causa de seu toque exótico e fluido, os orientais adotam as vertentes esotéricas das tradições abraâmicas que melhor se traduzem nas paisagens policromáticas ainda intensas na fantasia dos animes. A história revela que o simbolismo oculto e a narrativa, como talvez ainda estejam incompreendidos, criam uma ficção muito poderosa (a Alemanha sendo seduzida e romantizada pela filosofia oriental no Século XIX poderia ser um exemplo óbvio).


Antes de se aprofundar em alguns Evangelhos Gnósticos que se transformaram em animes, segue uma breve apresentação de um quadro dos quatro paradigmas da mitografia gnóstica:


1. O Mito do Demiurgo. Criação, o mundo ou mesmo a realidade por si mesma é controlada por uma divindade inferior e seus agentes. Estes anjos (ou Arcontes) criaram um véu de ilusão, ignorância ou mesmo desespero existencial sobre todos quem eles almejam dominar (ou às vezes se alimentar). No gnosticismo clássico, o personagem de Deus do Antigo Testamento foi o favorito modelo de vilão extramundano. Ele foi de vez em quando referido como o Demiurgo, termo grego para “artesão público”. Nos evangelhos gnósticos pós-modernos, o Demiurgo não necessariamente tem que ser um vilão divino, mas pode ter a forma de uma entidade opressiva, incluindo alienígenas, tecnologia fora de controle e mesmo instituições humanas. Tudo se resume a questão do controle humano versus a liberdade humana. Este mito inflama a questão do que é real e o que é falso em intricados níveis ontológicos (ou dimensões).

Demiurgo ou Yaldabaoth

2. O Mito da Alma Caída. Uma semente divina caiu em um mundo alienígena de um lugar que os gnósticos chamam de O Pleroma (ou plenitude). Esta semente crua de auto realização reside em cada mortal, também conhecida como “fagulha divina”. Isso é o que as criaturas inferiores do mito do demiurgo anseiam ou desejam corromper. Descansando em um sono ou estupor, a jornada épica verdadeiramente começa quando um mortal senciente descobre ou é escolhido para realizar o seu potencial transcendental. Uma confusa guerra de libertação tende a entrar em erupção. Nos animes e em outras ficções especulativas, que normalmente implicam no protagonista despertando para algum poder ou dom latente, a fim de cumprir um destino heroico. Este mito provoca a questão do que é ser consciente e os níveis de consciência que o ser humano é capaz de chegar (deve ser óbvio agora, que o gnosticismo e a ficção especulativa cogitam freneticamente sobre questões que vão além da ciência tradicional, moralidade e metafísica).

Alma aprisionada no mundo material buscando a redenção

3. O Mito do Salvador. Ele pode assumir duas formas. A primeira é que depois dele ou dela despertarem suas constituições supernaturais, o protagonista, ou a protagonista, não deve somente salvar aqueles que estão a sua volta dos Poderes e Principados que criaram o arranjo ilusório, ele ou ela deve espalhar o conhecimento (gnosis) aos outros para que todos compartilhem as mesmas liberdades ou descubram habilidades similares. A segunda forma é a figura do salvador que precisa de uma figura salvadora, já que a relação entre o hierofante e o neófito [ou seja, entre mestre e aprendiz] é central no gnosticismo (a caricatura do sábio professor oriental auxiliando o herói é comum entre os ocidentais). Este mito acende a questão do que significa ser um humano; e todos os seres humanos são verdadeiramente iguais, mesmo que alguns possuam maiores habilidades que os outros (um tema prevalecente nas histórias em quadrinhos, ficção científica, óperas e até mesmo séries de TV como Heroes).

A salvação segundo o gnosticismo

4. O Mito do Sagrado Feminino. No gnosticismo clássico, Sophia toma o lugar central tanto como um ser caído e como o redentor da humanidade. Sua encarnação tem tomado muitas formas incluindo a Deusa Shekinah, na Cabala; Maria Madalena, no Cristianismo Esotérico; e Gaia, no Neopaganismo. Sylvia em O Show de Truman e Trinity em Matrix são duas das mais famosas nos reinos da ficção científica. A encarnação pode ser a protagonista, a professora do protagonista, ou mesmo vários prismas do protagonista. Ela resgata ou é resgatada, ou mesmo ambos, nas batalhas contra os agentes da opressão e da ruptura das falsas realidades. E é difícil negar a obsessão e a confusão dos animes com o feminino e a sexualidade em geral (o que afasta ou talvez complementa a atitude gnóstica de desconfiar do sexo). Isto inflama a questão de diferentes níveis de amor, amizade e individualidade no que pode parecer um universo frio e indiferente.

Maria Madalena: O sagrado feminino no cristianismo gnóstico


Em todos os contos épicos gnósticos, estes mitos tendem a se sobrepor, assim como eles podem de repente se materializarem ou desaparecem nas tramas cósmicas. Como no mundo dos sonhos, linguagem da mitologia, regras e símbolos, frequentemente mudam de forma na tola incumbência de compreender a existência humana, mesmo no caso dos animes, eles são cercados por efeitos especiais prismáticos, sangue e imagens sexuais devassas.


Há um novo elemento que permeia os Quatro Mitos muito relevante para os animes gnósticos e a ficção especulativa, em sua luta para definir o que são os seres humanos de verdade e seu destino no cosmos, os gnósticos clássicos cogitaram a tripartição do ser humano – matéria, mente e espírito. Gnósticos modernos acrescentaram nesta tríade A Máquina – Tecnologia Avançada, Inteligência Artificial, Cibernética, Realidade Virtual, etc. “A Máquina” adiciona um componente filosófico profundo, como os deuses criaram os humanos e os humanos criaram “A Máquina”, e todos os três frequentemente encontram a si mesmos perguntando quem está no controle e quem realmente existe na percepção de cada um deles. A trilogia Matrix e os escritos de Philip K. Dick certamente focaram nesta perspectiva gnóstica.


Aqui você encontra algumas das maiores referências do gnosticismo em animes:


Neon Genesis Evangelion 


Lilith, figura gnóstica muito importante no anime Evangelion

A humanidade não enfrenta os anjos somente por sua existência, mas por sua alma, isto é flagrantemente gnóstico. Além disso, este é um típico anime mainstream, isto é, um cliché baseado em um mundo pós-apocalíptico, com robôs gigantes duelando e drama adolescente. Mas, Neon Genesis Evangelion abriga uma camada ainda mais profunda de temática gnóstica de várias escolas (Clássica, Junguiana, Dickensiana e Cabala).


As origens da humanidade são muito similares com a cosmogonia valentiniana, onde a queda de Sophia do Pleroma cria o universo e seus habitantes. Em Neon Genesis Evangelion, Sophia é substituída por uma existência denominada Lilith, cujos restos mortais são descobertos na Antártica e salvaguardados pelo ser humano moderno no Japão, nas profundezas de Tóquio 3. Logo depois, a civilização sofre o Dia do Julgamento quando outro ser chamado Adam (ecoando a celestial Adamas do gnosticismo, maniqueísmo e cabala) de alguma forma se choca com a Terra. Metade da humanidade é destruída, e os sobreviventes são forçados a viver no subterrâneo. Aquecimento global e outros cataclismas prejudicam os recursos do planeta. Um destópico governo mundial surge das cinzas.


E depois chegam os anjos para piorar a situação.


Estas criaturas buscam recuperar os restos de Lilith e Adam das garras da humanidade, uma vez que também são seu pai e mãe primordiais.

Referência à Árvore da Vida que aparece abundantemente no anime, inclusive na abertura

Os anjos querem a mesma coisa que os lideres da humanidade querem – a reintegração com Lilith e Adam em ordem de criar uma consciência divina coletiva que governará suprema. Enquanto os cientistas humanos tentam desbloquear as essências de Lilith e Adam, eles usam partes de seus corpos titânicos para criar monstros chamados unidades Evangelion (ou Evas) em ordem de repelir a invasão divina. Evas parecem com os elegantes robôs gigantes estereotipados, mas, são realmente semideuses bestiais que podem conjugar suas sensibilidades com os agentes humanos. Isto tudo cria um grandioso cenário de batalha que assola ainda mais a civilização, já que os Anjos não encarnam na Terra como dândis alados, mas como pesadelos lovecraftianos.


Somente certos jovens privilegiados podem pilotar os Evas; e todos eles acontecem de serem jovens disfuncionais de 14 anos. O protagonista principal é Shinji Ikari, um adolescente torturado que não só se torna o Salvador da humanidade, mas um símbolo onde vários dilemas psicológicos e existencialistas podem ser canalizados. Suas esposas-irmãs são a tempestuosa Asuka Langley (um símbolo de Maria Madalena ruivo) e a astral Rei Ayanami (de cabelos prateados, o símbolo da mística Sophia). Esses jovens não somente atravessam diversas fases clássicas do amadurecimento e do crescimento do humano e do herói, mas também são atrapalhados por seus amores subdesenvolvidos espiritualmente e fisicamente de um para outro, eles representam a confusão de perder a inocência em um mundo insano com adultos e deidades indiferentes.


Neon Genesis Evangelion rasga e emaranha as realidades, e propicia estudos psicológicos dos personagens nesta alienação pós-industrial. A série também leva a audiência para as fronteira da insanidade e desertos teológicos através de um elenco de cansados e às vezes sobrenaturais personagens que atacam a trindade anti-heróica de Shinji, Asuka e Rei (e suas psiques eventualmente sendo absorvidas primeiro pelos Evas e depois pelos próprios Anjos). Desde sobreviver as falsas realidades do Ensino Médio até viajar nos planos celestiais para batalhar horrores da pré-criação, Neon Genesis Evangelion é uma enciclopédia do gnosticismo. Tudo isso é imprensado entre o potencial do espírito humano para alcançar altura inatingíveis e o puro terror do universo que os paraísos prepararam para o curto reinado da humanidade.



Time of Eve 

Relação entre humanos e androides, foco do filme Eve no Jikan


Outra série futurista, embora em uma dimensão alternativa mais civilizada e pacífica.


Humanos e androides esfregando os ombros na Tóquio Futurística, indistinguíveis, exceto por uma característica – androides possuem halos que pairam sobre suas cabeças. O simbolismo é evidente com a evolução da obra, revelando que o ser humano é o demiurgo e os androides que estão presos em sua realidade que não escolheram. O halo serve como uma letra escarlate para denotar a inferioridade dos androides.


O título da série é baseado no café onde a regra da casa é a não descriminação entre humanos e robôs. As portas são regularmente trancadas, os halos desaparecem, e dialéticas socráticas são compartilhadas entre ser humano e androide, bem como revelações de suas tensas histórias. Dois estudantes do ensino médio, Rikuo e Masaki, encontram este café e se tornam fregueses regulares e protagonistas. A dupla também entra no inevitável território de autoconhecimento enquanto entendem as verdades mais profundas de suas próprias vidas.

Propaganda desestimulando a relação entre humanos e androides, presente na obra Eve no Jikan


Talvez o mais importante, Rikuo e Masaki descobrem que os andróides tem desenvolvido um espírito. Isto é um segredo que o orweliano Comitê de Ética quer manter for a do alcance público, para além de sua missão de garantir que a humanidade nunca nutra qualquer ligação emocional com as máquinas. Como a série se desenvolve, o Comitê de Ética tentar fechar o Time of Eve, que em essência representa estado edênico onde a camada externa dos sencientes são irrelevantes, as fagulhas divinas apenas são manifestadas por sua capacidade de compaixão, virtude e a sede pelo colapso dos opressivos costumes morais.


Time of Eve frequentemente faz alusão às Três Leis da Robótica de Asimov e muitas de suas outras filosofias.


Serial Experiments Lain

Lain


Lain é uma menina que mora com sua família de classe média nos subúrbios do Japão dos dias atuais. Ela começa a receber e-mails esquisitos de uma colega de classe que recentemente cometeu suicídio, um misterioso alter-ego quem em tempo a introduz à Wired (obviamente a internet, mas logo se percebe que possui sua própria sensibilidade).


Lain se torna obcecada pela Wired, mesmo transformando seu quarto em uma sala de máquinas high-tech que serve como central de comando. Eventualmente, ela é capaz de enviar sua consciência pela Wired. Lain embarca em uma série de aventuras surreais impregnadas com teorias da conspiração que começam a fundir o mundo real e o virtual juntos (bem como ela divide sua personalidade e se torna uma criatura divina na Wired). Seus principais inimigos se tornam um grupo de hackers chamados Cavaleiros do Cálculo Oriental (uma palpável alusão aos cavaleiros templários). Os hackers procuram derrubar as fronteiras entre a Wired e o mundo real. Uma compania obscura chamada Tachibana Labs tenta impedir que isso aconteça, se tornando a principal aliada de Lain.


Perto do final, Lain experimenta a vitória derrotando os Cavaleiros do Cálculo Oriental, mas também é derrotada quando sua família de repente a abandona. Ela está sozinha em todos os mundos, o que significa uma armadilha a ser transposta. O culminar de Serial Experiments Lain acontece quando uma entidade clamando ser deus confronta a heroína. Ele informa que ela foi realmente concebida na Wired e que ganhou um corpo humano no mundo real em ordem de servi-lo (embora ela tenha optado subconscientemente por lutar por seu verdadeiro lar).


Tudo que ela conhece no mundo real não passou de um construto, até mesmo sua família que era um holograma. Em certo sentido, Lain é Sophia atraída para fora do Pleroma (a Wired é, talvez, a existência ideal e original) e obrigada a reparar a situação. Em um episódio, uma pista de sua natureza é dada quando uma imagem divina sua aparece nos céus do mundo real, causando que a população acredite que se trata de um milagre.

Lain vista como uma aparição nos céus de Tóquio.

O Demiurgo é uma entidade clamando por ser deus, o verdadeiro soberano dos Cavaleiros do Cálculo Oriental. Embora nunca seja aparente qual o nível de divindade que esta entidade possui, é sabido que ele deseja usar a Wired para evoluir ainda mais a humanidade, a sua forma de vida favorita, muito parecido com o Demiurgo que tenta roubar os poderes e copiar o Pleroma no gnosticismo. Ele não assume a clássica forma gnóstica de uma serpente com uma cabeça de leão, mas há semelhanças – Deus tem uma face humana com uma grande cabeleira lembrando uma juba e torso de cabos de energia lembrando uma serpente.


No final, Lain (Sophia) e Deus (o Demiurgo) resolvem suas questões, e as duas realidades são colocadas em balanço.


Como em Neon Genesis Evangelion, existem grandes momentos de monólogos internos, sequências oníricas e períodos onde A Máquina e O Humano parecem ser intercambiáveis. Ao contrário de Neon Genesis Evangelion, esta série possuiu um ritmo mais lento e muito mais encharcado de poesia, especulação interna, e um brilhante existencialismo, ao invés de um niilismo quixotesco. Serial Experiments Lain é o anime que diferentes pessoas podem facilmente chegar em diferentes conclusões filosóficas e teológicas.

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Aqui termina a primeira parte do artigo, na próxima parte serão abordadas obras como Revolutionary Girl Utena, Ghost in the Shell, entre outras. Espero que desfrutem, até a próxima.

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