[+18] Fraction - Um exercício de metalinguística por Shintaro Kago.


Já faz um pouco mais de um ano que não escrevo sobre alguma obra do Shintaro Kago. Para saciar a sede de bizarrice de meus caros leitores, trago para vocês minha análise do mangá Fraction. Neste mangá, Kago tentou desenvolver um thriller policial, narrando o caso de um serial killer que corta as suas vítimas ao meio. Será que ele foi bem sucedido nesta empreitada? Só o que eu posso adiantar no começo deste texto que esta não é uma obra de mistério normal, nem um pouco normal. Na verdade, este mangá é completamente insano!


Não é novidade para ninguém, pelo menos para quem acompanha o Dissidência Pop, que Shintaro Kago é um dos meus autores favoritos. Ele representa um dos gêneros mais controversos do universo dos animes e mangás, o Ero-guro, que consiste em uma "erotização do grotesco", com temáticas escatológicas e forte abuso físico e mental. Sendo comum haver corpos desmembrados e violências de toda espécie, tudo permeado por uma aura sensual. O mestre deste gênero é sem dúvida Suehiro Maruo, sendo que alguns dos seus mangás já foram publicados no Brasil.


Contudo, Shintaro Kago foge do que tradicionalmente pode ser tido como o ero-guro tradicional, dando uma roupagem única e pessoal ao gênero. Na verdade, posso até afirmar que o estilo de Kago é único. Pelo menos nunca vi nada parecido com o que ele faz. Se alguém souber de outro mangaká parecido, eu ficaria feliz em saber. Shintaro Kago consegue misturar humor negro no grotesco, o que tira um pouco do peso das imagens fortes que desenha. Além disso, ele faz amplo uso de elementos metalinguísticos, como no presente caso, onde parte de Fracton é justamente dialogar sobre a produção de mangás ero-guro e de mistério, além de abordar um recurso muito curioso, a "manipulação narrativa".

Agora vamos conversar um pouco sobre o mangá Fraction, que será analisado neste texto.. Fraction é um mangá one-shot (apenas um volume), lançado em 2009. Composto por 12 capítulos. A primeira parte do mangá é composta pela estória que dá título ao mangá (Fraction). A segunda parte do mangá consiste de uma ótima entrevista sobre como fazer um mangá de mistério, entre Shintaro Kago e Ryuichi Kasumi, famoso autor japonês de ficção criminal, expoente do estilo "Baka Misu", que pode ser traduzido como "estórias de mistério ridículas", ou seja, estórias de mistério onde há a presença de elementos humorísticos. Após a entrevista há ainda algumas obras curtas de Shintaro Kago.


Fraction não foi serializado em uma revista periódica, isso se deu por própria vontade de Shintaro Kago, que entendia que uma narrativa como Fraction deveria ser lançada diretamente, sem os cortes provenientes do lapso temporal oriundo de uma publicação mensal ou semanal. Assim, a obra como um todo poderia ser apreciada muito melhor, além de evitar possíveis inconsistências que poderiam aparecer ao longo da produção, prejudicando o efeito desejado.

Sem dúvidas, Fraction é um mangá singular, até mesmo para os padrões de Shintaro Kago. Na medida que se vai avançando na leitura, percebe-se que este mangá foi uma tentativa dele criar uma história policial, onde pudesse utilizar os elementos necessários que formam uma obra de mistério. Para isso, Kago usou e abusou da metalinguagem. Fraction é como se fosse um estudo sobre a criação de um mangá de mistério. Mas vejam bem, ele ainda conta uma história, claro, mas o próprio autor, que é um personagem, faz parte da trama que criou! Ele não tem consciência de que está em um mangá, e inclusive é condicionado a tentar descobrir quem é o assassino!


É muito complicado tentar resumir o que é Fraction, digo a estória principal que dá título ao mangá. Mas vou tentar dizer algo sobre. Como já deixei entendido lá em cima. Fraction narra a história de um Serial Killer que tem predileção em cortar mulheres ao meio. Contudo, o mangá não gira simplesmente em torno de fazer o leitor tentar descobrir quem é o assassino, já que o próprio narrador é o criminoso, Kotaro Higashino, que trabalha como atendente de uma lanchonete.

O principal círculo de personagens é justamente composto pelos funcionários que discutem e tentam descobrir quem é o psicopata, especialmente uma das funcionárias, Ryoko Fujioka que possui inclinações detetivescas. Tudo ia bem na rotina de crimes de Kotaro, até que apareceu outro assassino cometendo crimes semelhantes ao dele! Obviamente, as autoridades logo suposeram que estes outros crimes eram de autoria do mesmo assassino. Kotaro fica muito irritado com isso, já que os seus crimes tinham uma intenção superior, "purificadora". Então, tenta descobrir a todo custo quem é o assassino imitador.


Em sua jornada por descobrir o farsante, Kotaro passa por muitos problemas, cada vez afundando mais em um enredo que parece sem pé nem cabeça. Quem na verdade é o assassino farsante? Porque Kotaro corta as mulheres pelas metades. O mangá até que pode fazer sentido no final, mas é uma coisa completamente insana, como seria de se esperar de Kago. Nem consigo dizer mais nada sem dar spoilers, mas asseguro que ler Fraction é uma experiência que vale a pena.

Fraction possui uma curiosa alternância de capítulos. Um capítulo narra o enredo padrão, com Kotaro como assassino, nos moldes que falei no parágrafo anterior, e nos próximos temos alernadamene capítulos onde Shintaro Kago é o personagem, juntamente com a editora Takeko Yuki. Creio que esses capítulos onde o Shintaro Kago aparece são justamente as melhores partes de Fraction. Bom, em resumo, meramente se tratam de uma conversa entre Kago e sua editora Yuki, mas nem tudo é o que parece com Shintaro Kago.


Curiosamente, a participação do próprio autor no mangá se inicia com ele se questionando se deveria continuar produzindo mangás ero-guro, uma vez que o sucesso que se pode conseguir com este tipo de mangá é limitado, por ser um estilo de nicho. Desta forma, seria mais interessante se aventurar em outros tipos de gênero! Vocês querem algo mais metalinguístico que isto? Kago, o mestre do ero-guro botando em cheque o próprio gênero que o consagrou, apontando os problemas em trabalhar com este tipo de material!

Kago também dá uma repassada em quais gêneros ele poderia trabalhar, logo de cara ele coloca de lado mangás de ação, e ecchis genéricos. O que ele realmente se sentiria bem escrevendo são mistérios! E o mais curioso, Fraction é um mangá de mistério! O próprio autor colocou no seu mangá o que lhe fez pensar em criar o mangá em si. Nossa, isso é meio complicado né? Mas isso é normal vindo de Shintaro Kago. Nunca espere menos que um nó em seu cérebro!


Entretanto, Kago recebe a proposta de um trabalho exclusivo, enquanto prepara seu novo mangá de mistério. A oferta seria justamente escrever uma coluna no jornal tentando desvendar o perfil psicológico do assassino em série que aparece em Fraction, que é justamente o protagonista do mangá! Entre um assunto ou outro, Kago explora diversos temas, e ponto principal do bate-papo com a editora é justamente sobre um recurso chamado de "manipulação narrativa".

A manipulação narrativa é sem dúvidas o tema mais importante de Fraction. Todo o enredo do mangá gira em torno dele. O curioso foi como Shintaro Kago o apresentou na narrativa! Mas vamos por partes. O que é manipulação narrativa? É um recurso utilizado principalmente na literatura que consiste em enganar o leitor, fazendo-o crer que uma coisa é algo que na verdade não é, através da retenção de informações importantes dadas. Um exemplo famoso seria fazer crer que o protagonista seria uma mulher pelo fato de ter cabelos compridos e vestir roupas femininas, enquanto na verdade seria um homem bissexual.


Esse recurso é utilizado em sua maioria em obras de mistério, nas quais é necessário descobrir fatos como "quem foi o assassino?" e coisas do gênero. Eventualmente essas informações omitidas são reveladas ao longo da trama, pois não teriam sentido se elas não fossem reveladas eventualmente. Shintaro afirma para a editora que ele quer utilizar em seu novo mangá de mistério a manipulação narrativa. Contudo ela levanta a objeção de que esse tipo de recurso apenas funcionaria em obras escritas, sem o elemento visual, que logo entregaria a trama.

Depois da editora afirmar a impossibilidade de aplicar a manipulação narrativa em mangás, Shintaro kago inicia uma longa exposição desmentindo o argumento. A manipulação narrativa funciona em mangás justamente em virtude da existência dos quadros, os quais podem esconder informações valiosas. Por exemplo, em um quadro uma moça parece viva e sorridente e não podemos ver o seu corpo da cintura para baixo. Contudo, na verdade ela foi partida ao meio.


Kago usou outros exemplos também, como a maratonista que parecia estar correndo, mas que estava apenas fazendo uma pose, ou ainda da moça que parecia ter uma cabeleira sadia mas na verdade era careca apenas no topo da cabeça. Como eu disse acima, tudo gira em torno dos quadros. E para ressaltar a importância dos quadros, Kago até dá um exemplo que se os retirasse todos as imagens se reuniriam e formariam uma criatura monstruosa.

Outra aplicação da manipulação narrativa nos mangás se daria através do uso da perspectiva. Dependendo do ângulo que se olhe uma coisa ela pode parecer algo que não é. Quanto a isso, Kago usou o exemplo do balão pintado na parede! Parecia que a personagem havia dito algo, mas nenhuma palavra saiu de sua boca, o balão que estava acima de sua cabeça estava, na verdade, apenas pintado na parede. Kago ainda cita muitos outros exemplos do uso da manipulação narrativa através de balões e outros recursos. Enfim, a manipulação narrativa pode sim ser usada em um mangá.


O interessante, e que reforça o caráter metalinguístico de Fraction, é que a manipulação narrativa foi amplamente usada no mangá. Depois que Kago explicou tudo isso, o leitor certamente ficará, como eu fiquei, pensando onde ele utilizou algum destes elementos, ou se realmente usou. Eu já asseguro que ele utilizou sim! Só não posso dizer onde pois seria um spoiler fundamental para a apreciação do mangá.

Confesso que a resolução do caso do assassino ficou maluca demais para parecer verossímil, mas isso é natural do estilo de Shintaro Kago, que é justamente chocar e abusar dos recursos que o mangá pode oferecer. O destaque mesmo reside onde Kago usou a manipulação narrativa para nos enganar. Isso foi realmente fantástico! Creio que nunca li algo tão pirado como isso! Chega a ser ridículo, mas é genial justamente pelo método de contar a estória escolhido pelo autor. Como podem ver, é difícil até definir o resultado de Fraction. Só lendo para saber.


Em resumo, o objetivo de Shintaro Kago com Fraction foi justamente servir como um exercício para criar um mangá de mistério utilizando manipulação narrativa. Melhor que o próprio enredo é justamente o processo que Kago levou para explicar e utilizar a manipulação narrativa, que foi genal. Neste caso, o método valeu mais que o conteúdo. Ou melhor dizendo, o método era o objetivo final, não o conteúdo.

Kago ainda trouxe muitas discussões e informações valiosas em Fraction. O primeiro exemplo seria sobre filmes de horror. Foram citados inúmeros filmes dos mais variados tipos e épocas, especialmente as obras de Dario Argento, o maior nome do terror europeu. Além, claro, dos clássicos, como A Noite dos Mortos Vivos (1968), de George Romero. Tanto Kago fala diretamente sobre filmes de terror como o próprio protagonista, o assassino em série, é um viciado neste tipo de filme.


Shintaro Kago também entra em um tema que eu nunca esperaria ver em um mangá. Cinema de ação com personagens deficientes físicos! Ele citou um filme de kung-fu com dois protagonistas, um sem as pernas e o outro sem os braços, Crippled Masters. Fiquei interessado em assistir este filme. Além disso, fiquemos sabendo com Fraction, que Kago é um colecionador compulsivo (ele é bizarro pessoalmente também)! Ele coleciona deste pôsteres de políticos até embalagens de salgadinhos e outros objetos que nós apenas consideraríamos lixo.

Kago até mesmo tenta justificar sua obsessão com coleções afirmando que quando um objeto comum é ordenado em uma coleção, ele não é apenas mais um objeto comum, mas faz parte de um todo ordenado. Não sei se Kago é realmente obcecado por coleções, mas tudo leva a crer que é maluco o suficiente para não precisar mentir nesta obra na qual ele revela muitos de seus gostos e pensamentos mais pessoais.


Como foi dito no começo deste texto, depois da estória principal Fraction terminar, ainda temos uma entrevista de Kago, e por último, algumas de suas estórias curtas. Esses pequenos capítulos não foram criado spara este mangá, mas são obras que foram publicadas em revistas ou coleções mais antigas. inclusive é uma boa oportunidade para ver alguns dos primeiros trabalhos de Shintaro Kago e como seu traço evoluiu ao longo do tempo.

Estas obras curtas são bastante variadas. A primeira é Back from the Front, a qual parece uma obra de Suehiro Maruo, provavelmente Kago se inspirou nele para desenhá-la. Esse conto é sobre um soldado que volta totalmente incapacitado da guerra e a esposa faz ele dele gato e sapato enquanto tenta desesperadamente se satisfazer sexualmente. Nem sei se essa é uma sinopse digna, mas é muito difícil definir esse conto, apenas leiam! Depois temos Tremors, mostrando Kago em sua melhor forma, numa estória onde todo mundo, de forma misteriosa, começa a tremer até desaparecer.


Ainda temos Collapse, sobre uma mulher que se torna obcecada pensando que está continuamente sendo observada. E por último, e a melhor estória curta que achei, Voracious Itches, que mostra a estória de uma moça que vai visitar sua amiga que voltou de viajem da América do Sul. Entretanto, esta amiga não estava normal, pois ficou obcecada pelo prazer causado com vermes e larvas caminhando por baixo de sua pele. Este é um capítulo visualmente terrificante! Muito mais para aqueles que tem medo de insetos e animais rastejantes.

Enfim, a conclusão que posso chegar com Fraction, é que é um mangá que merece muito ser lido. Deixando de lado seu conteúdo "ero-guro", ele funciona como um dos melhores exemplos de uso de metalinguagem que presenciei nos últimos tempos, com direito a cliffhangers espetaculares. Além disso, é um prato cheio para quem gosta de mangás bizarros. Sim, é pesado para aqueles que não suportam obras com sangues e tripas, mas mesmo assim, Fraction vale a pena ser lido.

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